

Análise de Perfis de Manchas de Sangue


Notícia em destaque
Vestígios, especialistas e seletividade
Segundo a Associação de Peritos Criminais Federais (APCF), tem-se por definição que "Perícia Criminal é a correta interpretação dos vestígios dentro dos limites estabelecidos pela ciência". Diversas definições similares são encontradas em outras fontes bibliográficas, mas é comum que todas possuam as palavras "Perícia", "ciência" e "vestígio" em sua definição. Apesar disso este conceito nem sempre parece ser compreendido por nossos gestores. Observemos o fluxograma da imagem em destaque. Trata-se de um cadeia clássica de um vestígio seguindo um fluxo desde sua coleta no local de crime até a geração do produto, o Laudo Técnico Científico, que posteriormente é encaminhado aos "clientes" (Juizes, promotores, delegados etc.). A fase crítica desta cadeia é mostrada pela figura através do caminho interrompido por uma cruz vermelha, ou seja, a impossibilidade de reprocessamento do exame de local de crime. Assim, ao contrário das outras fases mostradas no fluxograma onde setas pretas indicam possibilidade de revisão e reprocessamento, o local de crime na maioria das vezes não permite novo exame após sua liberação pela perícia. Isso nos leva a considerar a real importância de erros e acertos neste tipo de exame, pois ali a chance é praticamente única em se obter provas. Ao negligenciar a cena de crime pela coleta de vestígios sem conexão com os fatos também afetamos todo o restante da cadeia, o que se traduz em mais gastos com investigações, análises, revisões e verificações que ao final podem se mostrar irrelevantes para a justiça. A seletividade de vestígios nos exames de local de crime, no entanto, depende muito da habilidade dos Peritos envolvidos e habilidade só é conquistada com treinamentos específicos e prática. Vestígios com frequência e/ou com mais capacidade de fornecer informações importantes são vestígios estratégicos: que denominamos de maior potencial. Por isso devem possuir especialidades exclusivas para sua melhor compreensão e domínio. O vestígio sangue é um exemplo clássico deste tipo de vestígio. Isto porque o sangue como vestígio aparece em quase todos os tipos de crimes onda há emprego de violência e até mesmo em situações de não violência (corte ao se barbear, acidente doméstico, arranhão etc.). Apenas olhando o Mapa da Violência do IPEA de 2019, por exemplo, é possível inferir que cerca de 97% dos crimes de homicídios do país possui o vestígio sangue. Fora a frequência e o aparecimento em casos mais críticos, o vestígio sangue fornece ao Perito Criminal informações vitais para o esclarecimento dos fatos por ser um vestígio biológico com facilidade de extração de perfil genético mesmo quando apresentado na forma de traços ou na forma diluída. O domínio da técnica de análise de perfis de manchas de sangue também robustece o potencial do vestígio sangue à medida que melhora o entendimento do Perito a respeito da dinâmica criminosa, tornando-o muito, muito mais seletivo. E como se não bastasse, o vestígio sangue facilita sua detecção pela cor vermelha da hemoglobina possuindo ainda diversos métodos químicos e físicos de busca e de revelação na cena de crime.
Toda esse potencial do vestígio sangue já é conhecido há anos pelas ciências forenses. Peritos especialistas neste vestígio, denominados analistas de manchas de sangue, remontam de décadas atrás como especialidade obrigatória em integrantes de equipes de local de crime. Em 1983, Nos Estados Unidos, esses especialistas criaram a Associação Internacional de Analistas de Manchas de Sangue (IABPA) visando difundir esta técnica e criar protocolos. Em 2012, a Polícia Federal Americana (FBI) fortaleceu o desenvolvimento de padronizações na área através da formação de um grupo científico para o desenvolvimento da análise de perfis de manchas de sangue, o SWGSTAIN (Scientific Working Group on Bloodstain Pattern Analysis). Em 2015, as tarefas de padronização do SWGSTAIN foram absorvidas pela Academia Americana de Ciências Forenses (AAFS) dos Estados Unidos, ligada ao NIST (National Institute of Standards and Technology). Em resumo, de 1983 até os dias de hoje as padronizações apresentadas desta área são conhecidas e adotadas por quase todos os países que possuem analistas de manchas de sangue em seu corpo técnico. Congressos internacionais em análise de manchas de sangue também são promovidos anualmente e se concentram principalmente na Europa, América do Norte e Oceania. Para formação de mais analistas foram criados vários Institutos e Centros de treinamento em análise de manchas de sangue com destaque para Estados Unidos, Canadá, França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Suécia, Austrália, Itália, Rússia,Nova Zelândia etc. Instrutores credenciados pelo Comitê Educacional da IABPA também estão espalhados pelo mundo ministrando esta técnica dentro dos padrões pré estabelecidos para interpretação correta do vestígio sangue. O objetivo disso tudo é claro: produzir mais analistas de manchas de sangue. Para estes países ter um bom analista de manchas de sangue muitas das vezes se traduz em resoluções de casos críticos de maneira mais rápida e robusta em termos de prova científica gerando, assim, menor custo de investigação e melhor resposta aos anseios da sociedade por uma Justiça eficaz e justa.
No Brasil gestores forenses são alheios a este mundo de vestígios de maior potencial, simplesmente porque estatísticas não são geradas com este enfoque. A necessidade de formação de especialistas em manchas de sangue, por exemplo, ainda é incipiente mesmo diante de tudo o que aqui foi dito. E não estamos falando de um país com baixas taxas de criminalidade e alta resolução de crimes, pelo contrário, estamos falando de um país que ocupa o décimo terceiro lugar do mundo em taxas de homicídio/cem mil habitantes, atrás apenas de países da África e da América Central, vários em guerra civil. Estamos falando de um país com uma das piores taxas de resolução de homicídios do mundo: 30% (fonte:www.soudapaz.org), e estamos falando de um país que encarcera muito, mas na maioria das vezes sem provas adequadas para a justiça que acaba libertando os acusados em mutirões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Gostemos ou não um panorama típico de país de terceiro mundo.
Diante deste quadro podemos até entender a dificuldade ou o desinteresse do que é ou não importante. Talvez por pouco domínio técnico ou "visão de túnel" de sempre, sem quebra de paradigmas. A dificuldade em se aprofundar no fluxograma que trazemos aqui não é compreensível, mas para aqueles que entendem que o exame de local de crime é importante também convidamos a entender que ele é genérico demais para possuir especialistas. Há então necessidade de escolha de especialistas em vestígios de maior potencial e não especialistas em tipos de exames como se faz no Brasil. Todavia sem conhecer as estatísticas de nossos vestígios e também o potencial destes vestígios a escolha das especialidades fica comprometida e a mercê de achismos ou, o que é pior, de modismos.
Precisamos finalmente entender que a doutrina de desprender recursos com treinamentos genéricos, laboratórios caríssimos, equipamentos, scanners e máquinas de última geração é salutar e ótima para mostrar o preparo e a qualificação dos nossos Peritos, mas na prática será sempre de pouca ajuda se na "ponta" não tivermos Peritos especialistas em vestígios de maior potencial. Se não tivermos seletividade.